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Só somos livres quando nos amamos: uma resenha crítica do livro “Por Favor, cuide da mamãe”Portuguese(Português) Book Reviews
by Mariana Vieira Moura
Escrevo esta resenha após um Dia das Mães ausente. Faz cinco meses que iniciei minha jornada solitária morando em um apartamento na cidade de São Paulo. A pandemia não me deixa ver minha mãe. Enquanto ela está no lado dourado do país, cheio de coqueiros e maresias, e onde a pandemia tem sido mais ou menos controlada, eu estou na cidade que virou um cemitério vivo. São Paulo soa como um cemitério que grita, em brasa. O que me reanima são meus livros enfileirados na estante, que funcionam como minha mesa de santos. São minha segurança. Quando toquei no livro de Kyung-sook Shin, senti que seria difícil. Uma história de uma mãe desaparecida em um ano tão doloroso. Seria uma facada. E na primeira leitura, foi. Porém, na segunda, eu entendi a beleza do livro, consegui me enxergar na filha escritora e entender também o que fez florescer a maior liberdade na qual vivo, a possibilidade de ter saído da minha cidade natal e ido viver meu sonho. Aos leitores que também vivem em uma solidão do novo e em uma descoberta de novas galáxias, espero que ao terminar esse livro possam ver que há uma rede que sustenta nossos corpos suspensos no céu. Uma rede costurada de pessoas que constroem nossa liberdade. A história tocante criada por Kyung-sook Shin, autora do best-seller sul- coreano Por Favor, cuide da mamãe1 começa a firmar suas delicadas garras no coração do leitor com a narração de uma escritora, Chi-hon, que está desesperada à procura de sua mãe, Park So-nyo. A narrativa inicia-se com a escritora e, posteriormente, vamos conhecendo os outros filhos de Park e o seu marido, com um capítulo destinado à perspectiva de cada um. A mãe desaparece no metrô da estação de Seul, ao perder- se do marido. Os familiares da matriarca sumida possuem sua voz em segunda pessoa, ou seja, só se referem a si mesmos com “você̂ ” ou “tu”, à exceção do filho mais velho. O leitor sente na pele como se fosse um familiar egoísta que pouco sabe sobre sua própria mãe. Você̂ não pode negar, você̂ só́ pode se deparar com acusações sobre quem você̂ é. Você̂ não sabe a idade da sua mãe. Você̂ não sabe quando começou a perceber que sua mãe não sabia ler. Também não sabe quando as dores de cabeça dela começaram. Você̂ pouco também reconhece todo o sacrifício da sua mãe para que seus filhos fossem espíritos livres. Para entender a liberdade que Park So-nyo entrega para seus filhos, pode-se pescar uma memória de Chi-hon, a escritora. Em um passado de escassez durante a época de crise pós-guerra coreana2, a menina pede um livro de presente à mãe. O livro era intitulado: “Humano, demasiado humano”3, escrito pelo filósofo cético Friedrich Nietzsche. Esse livro, como bem Nietzsche detalha, é destinado aos espíritos livres: “uma coisa une e distingue todos os meus livros (...): todos eles contêm (...) redes para pássaros incautos” (NIETZSCHE, 2005, p.5) Tal livro presenteado versava sobre a quebra das tradições e advogava que o caminho do conhecimento envolvia uma visão da vida que quebrasse os costumes e as morais pré-estabelecidas. Porém, mesmo esse sendo o único presente da mãe, um livro do mesmo autor de “O Anticristo”, a narrativa surpreendentemente termina com Chi-hon (a presenteada) rezando no país mais católico do mundo, o Vaticano, com um rosário feito de pau rosa. Para começarmos a entender a lógica sequencial de tais cenas contrastantes, apresentadas entre o início e o término da narrativa, devemos notar que a coerência está justificada pelo símbolo do rosário de pau rosa, apresentado na história. Com efeito, após citarmos a relação inicial de contradição entre a oração e o livro, devemos focar no rosário de pau rosa. Esse artefato funciona como uma arma de Tchekhov. Tal artifício literário, criado pelo escritor russo, determina que quando há uma pistola no livro, em um momento terá́ que ser puxado o gatilho, pois tudo que está presente no texto tem um motivo. Na trama, a preparação do gatilho foi pelas mãos da própria Park So-nyo. “Qual é o menor país do mundo? Mamãe pediu que você̂ lhe trouxesse contas de rosário rosa se alguma vez fosse a esse país.” (p.38). A mãe justificou: “Porque você pode ir a qualquer lugar” (p.39). A mãe gostaria de receber o rosário como um presente, um símbolo da emancipação da filha. O conhecimento e o progresso da filha possibilitaram essa liberdade. Portanto, Chi-hon poderia ir a qualquer país, graças a essa possiblidade. De fato, essa questão da emancipação pelo conhecimento que o livro revela possui raízes na história de soerguimento econômico da Coreia do Sul pelo investimento em educação.4 Além do conhecimento, esse livro também falará da importância do afeto e das conexões humanas que possibilitam as condições para o progresso real de um país. Devemos citar um trecho da entrevista da autora para entendermos melhor sua mensagem. Kyung-sook Shin, uma autora que nasceu perto de uma aldeia em Jeongup, na península sul-coreana, em 1963, possui diversos livros premiados e atualmente trabalha como professora convidada da Universidade Columbia, Estados Unidos. A autora, ao ser questionada em uma entrevista5 para a Korea Society, sobre o porquê do livro “Por Favor, cuide da mamãe” tornar-se premiado (ganhador do prêmio Man Asian Literature) e sucesso em vendas no mundo todo, acertadamente, indica: De fato, como a autora aponta, a sensação de perda de compaixão familiar é um fator global, em que cada vez mais, no capitalismo, somos levados a um ritmo de produção e trabalho que nos afasta das relações de carinho e proximidade. A mãe torna-se, portanto, um arquétipo. Um arquétipo da compaixão e solidariedade. No livro, mesmo com os personagens que eram filhos dessa mãe prosperando economicamente, todos sentem em seu interior: “mamãe é a pessoa que você tem vontade de chamar toda vez que você se desespera com alguma coisa nessa cidade” (p.17). Como bem visto no texto de Shin, esse chamado desesperado para o arquétipo do cuidado e da solidariedade está permeado de sentido por meio do ato da leitura. De fato, a emancipação por meio do estudo e do conhecimento só foi possível graças ao esforço da mãe. Quem materialmente levou esses espíritos a serem livres foram os gritos e sacrifícios de Park So-nyo: “Do que adianta ter uma casa se você não pode sequer mandar seus filhos à escola? Eu devia quebrar tudo!” (p.34). Essa fala foi feita para exigir que a filha escritora conseguisse ir para a escola e também que aprendesse a ler. Se não houvesse leitura nem escola, não existiria escrita. Ademais, não foi somente para essa filha que a mãe lutou para que houvesse os louros do conhecimento. Apesar de ser analfabeta, a mãe lutou para que todos os membros da sua família estudassem. O sonho para seu filho, Hyong-chol, era que fosse promotor público e quando ele desistiu de tal objetivo e conseguiu um cargo em uma empresa, ela perguntou: “ O que aconteceu com o que você pretendia ser?” (p.77). Também havia uma filha, Yun, que tinha se estabelecido como dona de casa, com três crianças. A mãe fez questão de levá- la para o jardim primário determinada a aprender a escrever o próprio nome junto com a filha. Antes, com seus outros filhos, nunca havia conseguido acompanhá- los à escola. Em relação a essa filha, quando ela cresce e se estabelece como dona de casa, a mãe questiona: “como você consegue viver assim?” (p.150). O filho, por sua vez, reflete: “Mamãe, quando mais jovem, era uma presença que o incentivava a continuar construindo sua determinação como homem, como ser humano” (p.77). No capítulo escrito pela perspectiva do marido de Park So-nyo, também descobrimos que a esposa cuidava também de sua comunidade e doava dinheiro para um orfanato. E inclusive prometia para um menino chamado Kyun, comprar uma pasta para livros e uniformes quando esse fosse para o ensino médio (p.100). Se a questão do investimento na educação já aparece claramente, ainda nos deparamos com um dos fatos mais melancólicos do livro. O suicídio do cunhado de Park So-nyo, também (coincidentemente) nomeado de Kyun que se suicidou após uma vida assustadora na cidade grande na qual nunca conseguiu realizar seu sonho, o de estudar no ensino médio. Quem incentivou e lutou para que ele se formasse foi a própria Park So-nyo, que insistiu que, para levá-lo para escola, vendessem o jardim (p.127). E por fim, também descobrimos que a mãe estava aprendendo a ler e o livro que fazia questão de ler era o livro escrito por sua filha. De forma emocionante, a contradição entre os espíritos livres nietzschianos e o teor cristão do final da trama perde toda sua oposição: somente com o afeto, os espíritos se libertam. A leitura e o aprendizado no livro todo foram regidos pelo afeto. A arma de Tchekov do livro, o rosário de pau rosa, que recebe inclusive o título de epílogo (p.179), fecha todas as pontas soltas. O livro termina em oração com a peça dramática. Em uma entrevista6 sobre seu livro novo, “Sociedade paliativa: a dor hoje”, o filósofo de origem sul-coreana, Byung-Chul Han, brilhantemente alerta: “Eu acredito que os seres humanos alcançam o auge da beleza quando oram. É por isso que gosto de ir às igrejas. Sem dor, não conseguirão orar”. De fato, em tal livro, o autor argumenta que as dores não serão curadas somente com hospitais. Essa sociedade somente busca métodos paliativos, quando a verdadeira cura está na solidariedade e no carinho. Não se podem enganar os sentimentos. Permitir-se sentir a dor e pedir ajuda, isso é o que realmente cura. O mesmo autor, em seu livro “A agonia de Eros”7, argumenta que o amor se perde na individualidade. Em uma sociedade narcisista que não aceita o diferente, o Outro começa a sumir e não podemos viver a relação em si. Segundo o filósofo, o sujeito narcisista “não consegue estabelecer claramente seus limites (...) o mundo se lhe afigura como sombreamentos projetados de si mesmo. Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade” (HAN, p.6). Essa explicação torna mais clara a escolha de um capítulo para cada membro da família da mãe desaparecida. Cada um possui um fragmento de história da mãe, mas não conseguem delimitar exatamente quem é essa mulher (nem o ano de seu nascimento exatamente o sabem). Nesse ponto, até a mãe começa a se esquecer de si mesma; com uma hemorragia cerebral, aos poucos seu cérebro vai destruindo a sua identidade, mas não consegue pedir ajuda e se recusa a ir para o hospital. Seu maior ponto de apoio, um amor secreto, ela desiste de procurar. Desse modo, não resta nenhum Outro para que a mãe pedisse ajuda. A mãe decide destruir seus próprios pertences e ir sumindo aos poucos, até sua cabeça a destruir. As perguntas que ficam: será́ que ela teria ido ao hospital se os seus filhos tivessem decidido acompanhar seu ritmo? Se andassem um pouco mais devagar? Se a mãe pudesse falar tudo que estivesse na sua cabeça? Essa é a pergunta que o marido se faz. “Você até parava e esperava por ela, mas nunca caminhou ao seu lado, conversando com ela, como ela queria, nem uma vez sequer.” (p.117) De fato, esse livro nos lembra que o desenvolvimento só existe com solidariedade. Só existe com as pessoas que nos incentivam. Dessa forma, entende- se mais profundamente o final do livro, com o epílogo por conta da escritora, orando por sua mãe. Como Nietzsche declamou: “Um bom escritor não tem apenas o seu próprio espírito, mas também o espírito de seus amigos” (NIETZSCHE, 2005, p.76.) E, assim, após terminar de escrever essa resenha, olho com carinho para as memórias. As memórias com aqueles que amo e que me ajudaram a construir meu sonho e minha solidão escolhida. Dessa forma, graças ao livro de Kyung- sook Shin, posso enviar uma mensagem de carinho à minha mãe. Mãe, se meu espírito de escritora existe, é porque o seu espírito também esteve ao meu lado. Mal posso esperar para que possamos viajar juntas.
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Mãe só tem uma, mas quantas mães cabem dentro de uma mãe só?Portuguese(Português) Book Reviews
by Juliana Berlim
Com quantas braças se mede a extensão da dedicação materna? Os desvelos, as abnegações, as renúncias consideradas imanentes à vivência da maternidade? Contudo, quem dimensiona, no mesmo patamar, a mãe em sua grandeza simbólica para a família e em sua existência autônoma do tecido familiar? Kyung-sook Shin procura, em seu romance polifônico, desenhar os emaranhados caminhos do coração que, em um dia de verão na estação de Seul, se perdem com o paradeiro da Mãe que se desvencilha da companhia do Pai e caminha errante pelas ruas da capital sul-coreana. O sumiço da mãe é o disparador de um corolário de memórias. A memória é a grande personagem do livro. A mãe, usualmente grifada com maiúsculas, seja na sua forma regular, seja no epíteto amoroso, Mamãe, é a força motriz da família, a pessoa que ordena o espaço familiar que observamos ao longo da narrativa. Ela é a geradora das memórias afetivas de todos, como a ancestral sempre presente – o pai, inconsequente, abandona o lar de tempos em tempos em busca de aventuras de todo tipo e até mesmo substitui a esposa por uma nova mulher, que ele coloca dentro de casa, retirando a mãe de sua residência própria – e sua força de trabalho ininterrupta e seu otimismo constante marcam a vida de todos os familiares. Ela, como depósito das lembranças familiares, é justamente a pessoa acometida por uma doença degenerativa que não se esclarece durante o fio narrativo, mas que, desconfia-se, pelo perfil dos sintomas, tratar-se de Alzheimer. Ela, o livro de ouro onde se escreveram cinquenta anos de histórias de uma família sul-coreana do pós-Guerra da Coreia, por causa de pequenos derrames e perda da memória, se desliga da razão de seu existir, sua família, de modo extraordinário. Seu desparecimento, com a imprecisão sobre a morte ou não da pessoa desparecida, lança (finalmente) luz sobre uma mulher que tentara, a todo custo, se anular em razão dos cuidados com a família, principalmente com relação aos filhos, mas também em torno do marido, um homem resmungão e inútil dentro de casa, que vivia sob os cuidados da esposa como se fosse um filho honorário (nem mesmo arroz ele sabia cozinhar sozinho, embora fosse um velho septuagenário). Existem muitas discussões entrelaçadas no livro sobre a figura da mulher na sociedade sul-coreana. Ao final da narrativa, a culpa de todos os familiares com o leve desprezo com que sempre trataram a mãe é sintetizada na viagem da filha escritora, Chin, ao Vaticano, onde ela encontra a estátua da Pietà e faz uma aproximação óbvia entre a imagem da mãe do Cristo, o símbolo maior da devoção maternal no Ocidente cristão, e a imagem da Mamãe desaparecida, que, a esta altura, nós leitores sabemos morta, pois um dos capítulos do livro se dedica a um momento de transição do espírito de Park So-nyo entre a vida e o mundo espiritual. Ali, a filha mais velha expia simbolicamente o mal-estar, a dor e o luto de todos da família pela perda da mulher que, como Maria, abrira mão de viver suas vontades para dar vida aos sonhos dos filhos e aos caprichos do marido. O epílogo é longo e fraco, porque o símbolo é por demais óbvio e repete muito dos sofrimentos vivenciados por todas as personagens desde o fatídico dia do desaparecimento de Mamãe. A frase final, que dá título ao romance, sintetiza a entrega de Chin do espírito de sua mãe nas mãos da mãe cristã, imagem modelar da maternidade – paralelamente, o próprio espírito de Mamãe se entrega ao espírito de sua mãe biológica, que vem buscá-la depois de sua despedida virtual de seus amores no mundo material. Contudo, a chave para o romance é perceber que a morte, ainda que simbólica para sua família (que, ao término da obra, não sabe que ela morreu), de Park So-nyo não se dá quando ela desaparece, mas alguns anos antes de sua perda na estação de trem. A sagacidade formal deste melodrama é a polifonia dos narradores, pois a história nos é narrada pelos filhos Hyong-chol (o primogênito), Chin (a filha mais velha, escritora), pelo marido e pela mãe propriamente dita, que dedica muito de seu monólogo interior a analisar a condição de vida de figuras secundárias de sua família, como a caçula e a cunhada, além de sua paixão proibida, um vizinho que ela conhece por casualidade, mas com quem mantém uma relação emocional de décadas. A mãe, ao ser tratada pelos familiares, como aquela que naturalmente se dedicava aos afazeres domésticos e era a mãe e a esposa de alguém, a mantenedora financeira, a estimuladora geral, é esquecida em sua singularidade, pois ninguém se ocupava de verdade de Mamãe como uma pessoa. Alocada em suas funções sociais, o indivíduo Mamãe é coisificado e inservível quando a velhice lhe estanca as forças. O desprezo dos filhos é a lógica capitalista internalizada: sem força de trabalho, o ser humano é descartável. Ninguém na família, nem mesmo o filho mais velho, sobre quem Mamãe nutrira grandes esperanças de brilhantismo profissional, cumprira suas promessas de cuidado e conforto da mãe na terceira idade dela. Em uma passagem, as irmãs, ao trocarem impressões sobre um traço singular da mãe que as tivesse marcado, não sabem o que dizer uma a outra. Ninguém conhecia a mãe bem, embora ela conhecesse muito de todos. Ela era uma árvore de raiz bem fincada na terra, como o pé de caqui que presenteara à filha mais nova, em uma metáfora sobre a solidez de caráter da mãe. Nem por isso os filhos a respeitavam como sujeito e seu sumiço detona as mais fundas lembranças de como ela era única (como todas as mães, aliás) e de como ninguém lhe dedicava tempo suficiente. Essas observações dos filhos são uma crítica clara ao peso que os pais idosos se tornam para filhos em plena força produtiva e vigor físico, com carreiras consolidadas e famílias em construção. Para traçar o perfil materno, Kyung-sook Shin emprega o recuso do foco narrativo em terceira pessoa para personagens que estão falando de si mesmas. Com essa manobra, é como se a personagem cuja voz ouvimos se mirasse com uma lupa e fosse direcionada ao escrutínio da observação indireta, que lhe aponta defeitos e qualidades na condução das consequências do conflito (o desparecimento de Mamãe). A primeira pessoa só é assumida pela figura de Park So-nyo, que, pela primeira vez, assume a narração pessoal de sua existência, já que até então nos fora apresentada pelo olhar de terceiros (curiosamente, o que só acontece depois de sua morte). Através de seu monólogo interior, conhecemos a misteriosa figura de Lee Eun-gyu, o tal vizinho, “companheiro ideal” da matriarca e arrimo emocional de Mamãe quando as tampas de potes não eram suficientes para acalmar as frustrações da vida. Essa personagem traz humanidade à personagem principal, projetada para ser uma figura quase sacrossanta, ideia reforçada pelo epílogo de cariz católico. O romance é também o retratado de uma Coreia do Sul que caminhou, na segunda metade do século XX, tal qual o Brasil, outro país emergente, de uma sociedade rural e tradicional para uma nação urbana e cosmopolita. A pobreza vivida pela família nos primeiros anos de casamento dos pais, seguintes ao conflito entre as Coreias (e que impediram Kyun, o cunhado, de prosseguir os estudos por falta de dinheiro para arcar com os custos de manutenção na escola), é superada pelos filhos, que se tornam cidadãos de classe média alta em Seul. Contudo, a ocidentalização dos costumes e a adesão à globalização cobra seus preços à tradição local. O abandono sistemático dos coreanos do culto anual aos ancestrais, prática milenar, é a medida da uniformização praticada pelas forças do capital, que negligenciam o particular em nome de um modo de viver único entre os países do globo, algo que, simplesmente, não existe. A despeito da forte carga emocional que o livro carrega, com um retrato pungente sobre a relevância da mãe dentro da estrutura familiar, é um romance que, assim como “A vegetariana” de Han Kang, pinta um retrato de mulher contemporâneo no perfil patriarcal do ambiente sul-coreano. Nenhuma das filhas de Mamãe ambiciona seu retrato de mulher – mãe em tempo integral, mulher profissional e eroticamente anulada. A mais velha sequer se casou e a mais nova, apesar de ter três filhos, percebe que a vida é mais do que a maternidade e pretende voltar a trabalhar tão logo seu bebê, o caçula de seus filhos, tenha crescido. A figura de Mamãe terá sido a última na família a encarnar o papel da mãe de comercial.
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Por favor, cuide da mamãe: A solitária tarefa de ser mãePortuguese(Português) Book Reviews
by Júlia Silveira Castoldi
BRAZIL Por favor, cuide da mamãe é um romance da aclamada escritora sul- coreana Kyung-sook Shin, publicado originalmente em 2008, tendo sido traduzido para a língua portuguesa, em 2012, por Flávia Rössler e lançado no Brasil pela Editora Intrínseca. Shin, nascida em 1963 em uma vila rural próxima a Jeongeup, publicou sua primeira novela aos 22 anos e, atualmente, tem 17 trabalhos publicados, entre eles romances, coletâneas de contos e obras de não- ficção. Além de escritora, Kyung-sook Shin também é professora visitante da Universidade de Columbia, em Nova York. O livro Por favor, cuide da mamãe narra o desaparecimento da idosa Park So-nyo na enorme Seul e dos esforços de seus quatro filhos para encontrá-la, sendo a busca intercalada por lembranças de diferentes épocas da vida de cada um. É uma história permeada de arrependimentos e que apresenta uma série de pequenas negligências que resultam em um final trágico. A obra, dividida entre quatro capítulos e um epílogo, não é narrada em ordem cronológica e chama atenção pela presença de alguns trechos narrados na terceira pessoa do singular com o uso do pronome de tratamento “você”, o que coloca o leitor na pele dos personagens. Além disso, o foco da narração alterna entre vários personagens no decorrer dos capítulos. Logo no primeiro capítulo, o leitor se vê na posição de Chi-hon, a terceira dos cinco filhos de Park So-nyo, enquanto ela esboça um panfleto comunicando o desaparecimento da mãe, acompanhada de seu pai e irmãos. Chi-hon é uma escritora de cerca de 30 anos, que passa grande parte do tempo viajando, seja a trabalho ou lazer, e que só soube do desaparecimento da mãe quatro dias após o ocorrido. O incidente aconteceu quando Park So-nyo e o marido viajaram a Seul para comemorar seus aniversários, que eram celebrados juntos por terem apenas um mês de diferença. A celebração sempre era feita com uma janta com os filhos; no entanto, dessa vez, nenhum dos filhos foi buscar os pais na estação de metrô. Rodeado por uma grande quantidade de pessoas, o marido de So- nyo, que sempre foi acostumado a andar à sua frente em passos rápidos, acaba entrando no metrô sem ela, que fica para trás e se perde no meio da multidão. Depois disso, ela não foi mais vista. Por meio das lembranças da escritora, descobrimos que ela e seus irmãos foram criados em um pequeno vilarejo rural e, posteriormente, foram mudando- se para Seul, abandonando não somente sua aldeia, mas também seus pais. Chi-hon é teimosa e emotiva desde criança, e com o passar do tempo sua relação com Park So-nyo, que é chamada de “mamãe” ao longo da história, se deteriorou cada vez mais, visto que a filha a tratava com indiferença e, não raramente, suas ligações terminavam em discussões. Apesar disso, dentre seus irmãos, Chi-hon é a mais determinada a encontrar sua mãe. Ela passa a se sentir mal pela forma como todos a negligenciaram e se arrepende constantemente da forma como costumava tratá-la. Já no segundo capítulo, dessa vez narrado normalmente em terceira pessoa, o foco passa para o filho mais velho, Hyong-chol, que é diretor de marketing em uma construtora de prédios. Apesar de amar incondicionalmente todos os filhos, mamãe nutria um carinho especial pelo primogênito: ele sempre foi dedicado aos estudos, com a promessa de tornar-se promotor, embora nunca a tenha cumprido. Hyong-chol foi o primeiro filho a mudar-se para Seul, onde passou a morar em um centro comunitário e trabalhar no serviço público. Ele se recorda de quando precisava urgentemente do diploma de conclusão de ensino médio para efetuar a matrícula em um curso de direito e, por isso, mandou uma carta ao pai pedindo que levasse uma cópia do diploma ao terminal rodoviário e pedisse a alguém para a levar para Seul. No entanto, o que aconteceu foi que, na noite do mesmo dia, sua mãe apareceu no centro comunitário após ter andado de trem pela primeira vez para garantir que o diploma chegaria às mãos de Hyong-chol, entregando-o ela mesma. Apesar de ter sido muito próximo da mãe na infância e juventude, Hyong- Chol passou a deixá-la em segundo plano quando adulto. Era ele o encarregado de buscar a mamãe na estação de metrô, mas por estar estressado com o trabalho foi a uma sauna em vez disso, acreditando que o pai conseguiria encontrar o caminho. Ele custou a acreditar que sua mãe realmente tinha desaparecido, só entendendo a gravidade da situação semanas depois do ocorrido. O terceiro capítulo, por sua vez, é centrado no marido de Park So-nyo, cujo nome não é revelado. O homem alcoólatra sempre tratou a esposa com rispidez, a censurando e ignorando. Ele a via simplesmente como a mãe de seus filhos e, quando mais jovem, passava grandes períodos longe de casa. Um ponto importante da história é o analfabetismo de Park So-nyo: ela se envergonhava por não ser “instruída”, por isso considerava seu marido e até mesmo os filhos superiores a ela. Quando seus filhos moravam com ela, pedia à Chi-hon que lesse as cartas que Hyong-Chol enviava. Já quando idosa, mamãe pedia em segredo que uma voluntária do orfanato onde fazia caridade lesse os livros de Chi-hon para ela, com a desculpa de que não enxergava bem, e sem revelar que a autora dos livros era a própria filha. Tamanha era a vergonha que So-nyo tinha de ser analfabeta que seus filhos só se deram conta de que ela nunca aprendera a ler quando já estavam adultos. Conforme a história avança, mais os personagens redescobrem mamãe: a figura inabalável, e até mesmo ingênua em certos aspectos, na verdade também era uma pessoa com vida própria, a qual abdicou de suas próprias vontades e sonhos para criá-los. Vários questionamentos começam a surgir: será que mamãe gostava de cozinhar o tempo todo para uma família numerosa? Ela encontrava felicidade em passar o dia trabalhando nos campos e arrozais? No entanto, as incertezas quanto ao estado de Park So-nyo tomam um rumo cada vez mais obscuro quando os filhos e o marido descobrem os numerosos problemas de saúde que flagelavam So-nyo, como dores de cabeça repentinas e insuportáveis, lapsos de memória e até mesmo um derrame que mamãe teve anos antes e nunca havia falado sobre ele. Dessa forma, a figura maternal impecável vai se desconstruindo cada vez mais até revelar a realidade extenuada, sôfrega e deprimida, escondida na sombra da mamãe, que fazia tudo o que estava ao seu alcance sem medir esforços pelos filhos, mas pouquíssimo recebia em troca. Afinal, quemé mamãe? Partindo das memórias expostas pelos personagens, descobrimos que Park So-nyo é uma mulher de olhar ingênuo e gentil, de força descomunal, no entanto incapaz de fazer mal a qualquer ser vivo, e sempre pronta para ajudar a quem precisasse, colocando a si mesma em segundo plano. De origem humilde, foi forçada a casar-se aos 17 anos, pois naquela época, durante o cessar-fogo entre o comando das Nações Unidas e o comando comunista em Panmunjom, soldados norte-coreanos deixavam seus esconderijos nas montanhas para saquear as aldeias e circulava o boato de que eles sequestravam mulheres jovens. Foi uma mulher de muitos talentos, capaz de criar todo tipo de animal e tudo o que tocava tornava-se fértil, crescia e dava frutos. Apesar de levar uma vida árdua, encontrava felicidade ao ver os filhos crescendo e ao ser capaz de alimentá-los, apesar de a comida ser, por vezes, escassa. Quando visitava os filhos já adultos, chegava carregada de embrulhos e equilibrando trouxas na cabeça, trazendo todo tipo de comida e mantimentos. No decorrer das buscas pela mãe desaparecida, algumas pessoas entram em contato com os filhos, alegando ter visto uma senhora que se encaixava na descrição de So-nyo: uma idosa desorientada que usava vestes azuis de verão. Além disso, vários relataram também que essa senhora estaria usando sandálias que feriam um de seus pés, ocasionando um ferimento muito severo, no qual era quase possível ver o osso. No entanto, os filhos nunca conseguiam chegar a tempo de encontrar a suposta senhora e, com o passar das semanas, eles deixaram de receber ligações. O quarto capítulo mostrou-se como o mais enigmático. Ele começa narrando sobre Yun, a quarta filha, do ponto de vista da própria mamãe, que a visita em forma de pássaro, dando a entender que não está mais viva. Yun, mãe de três filhos pequenos, é a filha que tinha a melhor relação com a mãe; entretanto, não pôde auxiliar na busca por estar atarefada com suas crianças. Em seguida, mamãe passa a narrar brevemente sobre Eun-gyu, um amigo que ela mantinha em segredo e a quem pedia ajuda nos seus momentos de maiores dificuldades. Depois disso, é como se mamãe visitasse sua casa, pois ela fala dos cômodos e de alguns objetos que lá estavam guardados, além de também comentar sobre seu marido e irmã. Então, revela que quando se perdeu em Seul, só conseguia se lembrar das memórias de quando tinha três anos de idade, por isso vagou pela cidade sem norte. Encerrando o capítulo, fica entendido que mamãe deixa definitivamente esse mundo para poder, enfim, descansar: ela encontra sua mãe, que a toma em seus braços. O epílogo, que se assemelha ao primeiro capítulo por colocar, mais uma vez, o leitor na pele de Chi-hon, conta sobre como a escritora, depois de meses de busca, viaja a Roma com seu namorado. Durante uma visita ao Vaticano, ao admirar a Pietá de Michelangelo, Chi-hon suplica à Mãe de Jesus que, por favor, cuide da mamãe. E com esse pedido sôfrego, desesperado, o livro se encerra. A carga emocional contida nessa fala aparentemente simples é excruciante: ao deixar mamãe sob os cuidados da Mãe de Jesus, Chi-hon, a filha que mais lutou para encontrar a mãe e que insistiu o tempo todo para que seus irmãos continuassem a procurando incessantemente, aceita que mamãe já não poderá mais ser encontrada com vida. Trata-se de engolir amargamente o fato de que sua mãe partiu sem ter a chance de receber um retorno ao nível dos cruciantes sacrifícios aos quais dedicou sua vida inteira. Também há certo simbolismo na presença dessa estátua na história: é possível traçar um paralelo entre a Pietá e a cena que Park So-nyo, a mamãe, vê quando padece. Assim como a Virgem Maria, com olhar pesaroso e cheio de dor, segura o corpo sem vida de seu filho, So-nyo vê o rosto inundado de tristeza de sua mãe, que livra seu pé da sandália que a mutilava, e a carrega em seus braços. Como considerações finais, vale citar que a obra chama atenção por nem todos os personagens terem nome e, apesar de o final ser emocionante, ele deixa algumas questões em aberto: o leitor fica curioso para saber qual foi o paradeiro de Park So-nyo em seus momentos finais e se algum dia seus filhos a encontrariam. É uma história sobretudo angustiante, pois percebe-se que detalhes muito pequenos desatam um fim catastrófico: o suplício de Park So-nyo poderia ter sido facilmente evitado se seu marido a acompanhasse apropriadamente na estação, ou se seu filho tivesse ido buscá-la ao invés de visitar uma sauna, ou se alguém tivesse dado a devida atenção aos problemas de saúde da mamãe antes que eles evoluíssem a um estado tão crítico. A lição do livro é clara: embora a função de “mãe” pareça tão natural e até mesmo inerente aos filhos, ela é desempenhada por meio de inúmeros sacrifícios que muitas vezes se mantêm ignotos, seja por indiferença dos filhos ou por força de vontade da mãe que, como pilar da família, não se coloca na posição de alguém que possa ter fraquezas ou precisar de cuidados. Eu acredito que Por favor, cuide da mamãe é uma excelente obra, justamente por combater a ideia romantizada da maternidade, e recomendo tanto para mães quanto para filhos a partir da adolescência. Além da grande lição de moral, por meio do livro também é possível entrar em contato com elementos próprios da cultura coreana, como tradições, superstições e rituais. A linguagem utilizada facilita o entendimento e mesmo pessoas que desconhecem a cultura coreana podem deleitar-se com a obra. Apesar de que as trocas de foco narrativo e o uso do pronome de tratamento “você” para se referir a certos personagens narrados na terceira pessoa do singular possam confundir o leitor a princípio, uma vez que esse se acostuma com a abordagem utilizada é possível desfrutar da sensibilidade poderosa que esse tipo peculiar de narração possibilita. Eu acredito que todas as mães carregam consigo um pouquinho de Park So-nyo, e duvido que haja algum filho que nunca foi ingrato com a mãe, mesmo que sem perceber. É uma história infeliz, mas profundamente tocante e indubitavelmente admirável.
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